Chegada de sempre, ir-te-ás por toda a parte.
Arthur Rimbaud, À une raison.
UMA CERIMÓNIA DA DESAPARIÇÃO
A ESTRANHEZA DESTES ROSTOS SEM ROSTO
O TEMPO, SEU ÚNICO CONTEMPORÂNEO
SAIR DA SUA PERTENÇA, EXILAR-SE DA SUA ORIGEM
FORA DO OSSÁRIO NATAL
UMA LUZ DE MORTE QUE INCESSANTEMENTE DESTRÓI A MORTE
IDENTIFICAR-SE, NÃO COM UM IDEAL IMAGINARIO, MAS SIM COM UMA IDEIA ABSTRACTA
A POLIFONIA DO SER
UM ESPAÇAO LIVRE PARA O JOGO DO TEMPO
A IMAGEM UNICA DE UMA FIGURA UNICA NA IMPESSAOLIDADE ANONIMA DO UNIVERSAL
SER CADA VEZ MAIS QUANTO MAIS SE APROFUNDA A TRANSFORMAÇÃO DE SI
NUM PARA ALÉM DO QUE MOSTRA A IMAGEM
O BRILHO INESGOTÁVEL DO QUE FALTA
UMA CERIMÓNIA DA DESAPARIÇÃO
Ela sorri enquanto inclina a cabeça, e lança-nos, numa voz clara: “Interessa-me tudo o que não seja eu.” Que quererá dizer com isso? Não fazemos ideia, mas aprovamos, pois adivinhamos brutalmente que tudo o que seja identitário, genealógico, genético até, que todas as origens religiosas e sociais ou familiares serão por fim eliminadas, negadas, e ultrapassadas. É sua também a seguinte fórmula, profundamente concisa: “Cada fotografia é uma cerimónia da desaparição.” Aguardemos o seguimento: “Os meus auto-retratos são naturezas-mortas. Aquilo que mostro é a imagem de um cadáver.” Sim, evidentemente, um cadáver.
Vemos logo do que se trata: do ser e do nada, da vaidade da imagem, da vida e da morte, e acima de tudo da ultrapassagem do narcisismo.Fala nos seguintes termos: “Mostrar não é dar tudo a ver. Olhar é ver que algo escapa ao olhar, que a imagem deixa a desejar.” E insiste: “O que o olhar vê na imagem não é aquilo para que está a olhar. É o que falta na imagem que capta o olhar.” Não existe, então, desejo que não seja daquilo que falta? Sim, é precisamente isso. Mais adiante, a formulação torna-se mais precisa: “Uma obra é um sintoma bem sucedido, ou seja, transformado. A arte é aquilo que transforma.” Transformação, será essa a palavra-chave de Kimiko Yoshida.
De passagem, chama-nos à ordem: “O auto-retrato não é um reflexo de nós próprios, mas sim uma reflexão sobre a nossa própria representação.” De boa vontade acreditamos nela, quando afirma virar as costas a toda a “demanda identitária” e ao que a acompanha: ferida narcísica, incessante procura da origem, reivindicação furiosa da pertença, fechamento sobre si próprio, aborrecimento, humilhação. Naturalmente, a artista recusa os estereótipos estafados do comunitarismo e da sua ideologia de segregação, que iluminam a época com uma bizarra luz castanha. Em vez disso, a sua obra fala da alegria que há numa pessoa ser ela própria, sem ter para isso de se achar idêntica a si própria, sem se identificar com nenhuma memória, nenhum clã, nenhuma família.
Somos informados de que são Auto-retratos, mas é estranho observar como não são parecidos. Estranho também é o facto de que estes rostos, todos tão diferentes, tendem a confundir-se quase integralmente com o monocromatismo do fundo, sumindo-se nele. Quem é esta jovem mulher, que se oculta por trás da sua própria máscara? É impossível sabê-lo verdadeiramente. De onde vem? Do Japão, claro, mas também de muito mais longe: Grécia, Mesopotâmia, Pérsia, Egipto, Judeia, Iémen, Amazónia, África, Nova Guiné… Faz a sua entrada numa geografia oculta, com grande intensidade e calma.
Que deseja ela mostrar, ao esconder-se em plena luz? Que olha ela, debruçada para o interior de si mesma? Dará sequer por nós? Não terá simplesmente entrado em meditação? Ou em levitação? Não estará a gozar uma estranhíssima liberdade? Deslizou visivelmente para dentro da venturosa sensação de ser. Pertence a Montaigne a seguinte maravilhosa formulação: “É absoluta perfeição, e como que divina, saber gozar lealmente o nosso ser[i] [2].” Olhamos para ela e sentimos que penetrou, com efeito, na “absoluta perfeição”. Sim, a artista, nos seus Auto-retratos, sabe, para além de toda a imagem de si própria, falar do seu ser e gozá-lo lealmente. Sem contrapartida, sem reverso. Assim vista, a arte, ou aquilo a que pomos esse nome, torna-se natural.
Auto-retratos, sem dúvida, mas livres das inércias da semelhança, arrancados ao peso psicológico, libertos da gravitação universal, aéreos. Prolongamento súbito de um Éden pré-socrático. Fora do alcance da habitual paródia niilista, do erotismo trash ambiente, do sentimentalismo imposto. Uma arte que não fosse unicamente roída pela morte. Longe, muito longe do rebentar das crispações identitárias, das reivindicações armadilhadas da segregação comunitária, da complacência face ao determinismo social ou religioso, do papel gasto do gender e dos falsos valores da pertença.
Estes rostos que devoram o espaço para além da imagem em que se somem são-me convenientes. Não se parecem com nada, o que faz com que me toquem ainda mais. Reconheço, contudo, na sua presença concentrada, dinâmica e universal, todos os rostos de mulheres que conheço. Estes Auto-retratos incorporam em si mesmos, na esfera invertida do Tempo reencontrado, todo o tipo de rituais esquecidos e mitologias intemporais.
Passaram por Ticiano, El Greco, Velázquez, Rembrandt, Fragonard, Manet, Picasso, Bacon, Warhol. Concentram em si toda a história do retrato, e as qualidades do fagócito. Contêm todas as Vénus e rainhas de Sabá, as Marias Madalena e as Marilyns, as Susanas no banho e as mensageiras dos deuses, guerreiras, santas, cortesãs ou sultanas… Nus de pé ou a descer as escadas, efígies de frente e de perfil, deusas, banhistas, rainhas, infantas, passantes, banhistas, flores do mal, jovens em flor…
A ESTRANHEZA DESTES ROSTOS SEM ROSTO
“Nalguma festa nocturna numa cidade do Norte”, escreve Rimbaud em Illuminations, “encontrei todas as mulheres dos antigos pintores.” Kimiko Yoshida fez como ele. Contudo, os seus Auto-retratos não deixam de ser um cúmulo de incongruência em termos históricos. Há que olhar e compreender a presença, o apagamento, o instante que nos trazem estas imagens intensas e pacificadas. Estas mulheres são singulares. O que as torna ainda mais perturbadoras. Mantém-se, contudo, a estranheza desses rostos sem rosto, inatingíveis, sumptuosos e frágeis, a levitar num éter imóvel, como um vento fresco num céu límpido.
De súbito, só ela existe. Acaba de surgir aqui, numa vibração do presente. O passado incessantemente anulado. O futuro inútil. Não há, por fim, mais nada para interpretar. Estamos apenas ali, perante algo incompreensível. Estamos ao mesmo tempo dentro e fora, já não há dentro nem fora. Que sossego, que silêncio, que precisão. É como se a condição humana houvesse encontrado a sua fisionomia primordial, incompleta e plena, ao mesmo tempo manifesta e ausente.
Kimiko Yoshida insinua-se, aqui e agora, em plena luz e todavia em pleno mistério, na esfera do verdadeiro desprendimento, onde a figura do infinito se desvela. Ela organizou-se para alcançar este paraíso de presença revelada. Uma vez cumprida, a “cerimónia da desaparição” torna-se revelação pura. A figura revelada tende para o intangível, está prestes a desvanecer-se no fundo monocromo, a dissolver-se na cor única, a desaparecer da imagem. O que primeiro aparece na imagem é a desaparição, quando a figura desaparecida se revela como aparição em vias de desaparição. Quando o rosto se apaga sob a cor uniforme, aparece como a desaparição na qual aquilo que desapareceu ainda guarda a aparência daquilo que desapareceu.
Aquilo a que chamamos revelação é precisamente isso: o invisível tornado aparência. A imagem supõe a ausência e o apagamento daquilo que representa, identifica-se com aquilo que subsiste na ausência. O que torna possível a imagem é o limite onde ela se apaga, o limite onde se mostra o que fica quando não há nada.
Aí reside a ambiguidade que a arte de Kimiko Yoshida ostenta e dissimula, a ambiguidade que é o fundo sobre o qual a imagem continua a afirmar a ausência da figura revelada no seu apagamento. Entre figuração e abstracção: abstrair a figura, sempre subtraindo, sempre eliminando – e figurar a ausência, voltando a apagar, fazendo sempre desaparecer.
A desaparição que opera nestas imagens – a imagem da desaparição, a imagem como lugar da desaparição – revela-nos um apagamento mais essencial. A imagem da desaparição tornou-se uma desaparição da imagem. A obscuridade iluminadora da noite é por fim trocada pela suavidade do dia, sob um sol constante. A revelação a cores acaba de ocorrer.
O resultado é profundo.
Retrato da artista enquanto figura mitológica fundamental: ao olhar, um por um, estes Auto-retratos, verificamos que a figura é sempre essencial, intemporal. Poderia ser fenícia, suméria, babilónica, assíria, etrusca, pouco importa. Foi sucessivamente górgona, vestal, mártir, madona. Pode ser ao mesmo tempo Atena, Ártemis e Afrodite, Íris, Circe ou Diana, Lucrécia e Antígona, Cleópatra, Olímpia, Beatriz, Ofélia… A sarabanda gira sobre si própria.
O TEMPO, SEU ÚNICO CONTEMPORÂNEO
Vemo-la, negra deusa, branca imagem, substância feminina em levitação ou em êxtase, desprendida, profunda, sublime, meditativa, indiferente, concentrada, segura de si própria, secreta, apagada, majestosa, aristocrática, silenciosa, aérea, solene, excessiva, fresca, intemporal, hierática, bela, intensa, alegre, universal, irresistível, inatingível, feliz, desejável, sem começo, rigorosa, inquietante, inflexível, sensível, diferente… Todas as verdades, reflectindo bem, podem ser-lhe ditas, todos os papéis lhe são convenientes, o resto vem por arrasto. Se querem ser amados, comecem, como ela, por amar-vos a vós próprios. E parem de aborrecer toda a gente com os acasos desesperantes da vossa suposta identidade : origens sociais forçosamente insatisfatórias, uma história familiar certamente infeliz, um gender que vos coloca problemas, o vírus religioso que vos corrói a vida, o impasse da vossa pertença étnica, a vossa hereditariedade incerta, o vosso pathos confuso, as vossas manias religiosas sem saída, os vossos embaraços psicológicos e vosso amor pela vossa diferençazita. É que, para além dos lugares-comuns e da banalidade convencional da vossa reivindicação narcísica, passa-se também que quanto mais nos achamos uma excepção, mais nos atolamos na opinião geral e, correlativamente, quanto mais nos achamos universais, menos temos da excepção que força a unanimidade e se impõe a todos como um factor de verdade – sendo a excepção, com efeito, a única posição que permite a entrada.
Todos o admitem, e contudo quase ninguém ousa pensar as suas consequências: o gueto, paradigma ocidental da exclusão e da homogeneização, assinala o fracasso do universalismo. Daí resulta a segregação narcísica, o tédio sexual, a inibição psíquica, que levam ao fechamento psicológico, à família, ao clã, à comunidade, ao próximo, à etnia, que levam à desconfiança racista instintiva, à fobia da alteridade, da alteração, da impureza. Sem esquecer os apelos incansáveis ao fanatismo da filiação e afastamento do Outro que se seguem. Para combater a angústia do contágio, há que apostar na mistura, na promiscuidade, na mestiçagem. De acordo com os desejos do senhor do espectáculo social, pois houve demasiadas desordens, no futuro o significante principal será separação, ou seja purificação étnica, limpeza étnica, depuração étnica em nome do gozo infame da pertença mortífera, da comunidade, da origem.
Estamos a ver a posição frontalmente oposta por que Kimiko Yoshida optou, em resposta a esse senhor absoluto que é a morte, de quem depende o jogo da História e da decomposição social – lembremos as palavras de Hegel: “A Morte é o Senhor absoluto”. Admiramos a incrível liberdade física com que a artista põe em funcionamento a sua resposta ao senhor absoluto e ao seu jogo de morte.
Assim aparece, ao sabor das transformações de si realizadas por ela própria, a figura de uma africana, seguida de uma índia, de uma tibetana, com digressões pela Rússia, Palestina e Iémen… Uma mulher, seguida de outra mulher, seguida de outra… Aparecimento e desaparição, as figuras mudam e não mudam, trocam-se na noite dos tempos, juntam-se noutro sítio e de outra forma, indicam a saída do círculo. Epifanias e iluminações…
Que saberíamos da beleza sem estas visões frontais da estranheza? Eis-nos ne presença alternada da Vénus neolítica, da sacerdotisa azteca, da amazona guerreira, da Eva do Éden, da pitonisa de Delfos, da Noiva celibatária posta a nu, da vestal de Pompeia que desvela o Falo erecto dos mistérios esquecidos.
Desorientação da história? Descontrolo do Tempo? Estaria a artista em vias de criar uma arte superior à metafísica, mais forte que a dialéctica da morte e da vida? É exactamente o que ela pensa. Olha em seu redor e vê que o Tempo é o seu único contemporâneo. A sua arte triunfa imediatamente sobre o nada.
Nada de simbolismo obscuro, nada de mistérios irracionais inúteis. Kimiko Yoshida dá a ver na cor a beleza sem idade que ilumina o espaço. Mas como ousa hoje mostrar-se a verdadeira beleza? Vejam, aqui, o instante vivido pelo instante, na sua forma captada num estado plenamente desperto, liberta do nada. Fora da sobrestimação do negativo, longe dos pesadumes falsamente herméticos. A mais pura simplicidade, clareza e subversão.
SAIR DA SUA PERTENÇA, EXILAR-SE DA SUA ORIGEM
Totalmente entregue à felicidade de existir, enquanto “si” diferente de si. Não é ser “si própria” o mesmo que ser constantemente uma outra? Ela sustenta, junto com Rimbaud, que “eu é um outro”. Um eu “múltiplo, impessoal, porque não anónimo”, como se exprime Mallarmé, o grande contemporâneo de Rimbaud.
Eu é um outro? Formulação demasiado famosa para ter sido verdadeiramente lida. Afirmação incessantemente obscurecida, mal interpretada; compreendida demasiado à pressa, por outras palavras. Hegel: “Aquilo que é geralmente bem conhecido não é conhecido, precisamente por ser bem conhecido[ii] [3].”
Teremos claramente na ideia que a fórmula de Rimbaud, tão fulgurante e “bem conhecida”, surgiu em plena insurreição da Comuna de Paris? Há que ler a carta de 13 de Maio de 1871[iii] [4], conhecida como a primeira carta do Vidente, onde o muito jovem escritor exprime as “cóleras loucas” que o levam “a caminho da batalha de Paris”. Nesta carta que “não quer não dizer nada”, bem nos parecia, Rimbaud estabelece um poderoso programa de “encanalhamento”. Ei-lo: “Trabalhar neste momento, nunca, nunca; estou em greve. Neste momento, encanalho-me o mais possível. Porquê? Quero ser poeta, e trabalho a fazer-me vidente: não vai compreender nada disto, e mal conseguiria explicar-lho. Trata-se de alcançar o desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu reconheci-me poeta. Não é de forma alguma culpa minha. É falso dizer: ‘Eu penso’. Devíamos dizer: ‘Pensam-me’. Perdão pelo jogo de palavras. Eu é um outro. Tanto pior para o lenho que se descobre violino, e provoca os inconscientes, que chicanam contra aquilo que ignoram por inteiro!”
Jogo de palavras muito sério, com efeito. Experiência radical inaugural, que antecipa as de Clérambault (primeira formulação clínica dos “fenómenos xenopáticos”: pensam-me) e Lacan (é conveniente não dizer “eu falo”, mas sim “eu sou falado”). Resumindo, o “eu” está sujeito à linguagem: o sujeito da linguagem é antes de mais um sujeito sujeitado à linguagem.
Dois dias depois, na segunda carta do Vidente, Rimbaud oferece mais “uma hora de literatura nova” a outro interlocutor[iv] [5]. Eis “a prosa sobre o futuro da poesia” que lhe envia: “Pois eu é um outro. O cobre acorda feito clarim, sem ter culpa nenhuma. Tal é para mim evidente. Assisto à eclosão do meu pensamento; olho-a, escuto-a; dou um golpe de arco; a sinfonia remexe-se nas profundezas, ou entra em palco de um salto. Se os velhos imbecis não tivessem encontrado apenas o significado falso do eu, não teríamos agora de varrer estes milhões de esqueletos que, desde há um tempo infinito, vêm acumulando os produtos da sua inteligência vesga, de que se afirmam autores!”
Um golpe de arco lança a eclosão do pensamento, a transformação da madeira em violino cria o remexer da sinfonia nas profundezas, a transformação do cobre em clarim chama a poesia a entrar em cena de um salto: “um toque do teu dedo no tambor descarrega todos os sons e começa a nova harmonia”, diz ainda Rimbaud em À une raison. Arco, violino, clarim e tambor – desregramento, sinfonia, harmonia e poesia; aqui temos os meios e o objectivo daquele que nasceu poeta, e se reconheceu poeta. A música e as letras.
Aquilo que conta, evidentemente, não é a madeira, nem o cobre, nem o eu, mas sim não continuar si mesmo, sair da sua pertença, exilar-se da sua origem. O que realmente importa é transformar-se em violino, metamorfosear-se em clarim, tornar-se poeta : transformação, transfiguração, iluminação. Perante isso, a má poesia acumulada “desde há um tempo infinito” pela desinteligência “vesga” dos “velhos imbecis” que se reclamam exclusivamente do “significado falso” do eu, não passa de “milhões de esqueletos” para varrer sem trégua...
Duas linhas mais abaixo, o escritor determina o alcance da sua cólera contra o jogo “bafiento” da literatura “idiota”: “Há tantos egoístas que se proclamam autores; muitos outros atribuem a si próprios o seu progresso intelectual! Mas trata-se de tornar a alma monstruosa… Afirmo que é preciso ser vidente, tornar-se vidente. O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura.”
FORA DO OSSÁRIO NATA
Por seu lado, Kimiko Yoshida não acredita que o seu eu seja sagrado, intocável, ou sequer autónomo. Isso não a impede, visivelmente, de gozar lealmente o seu ser, de gozar numa absoluta perfeição a intimidade do seu ser – e de experimentar “todas as formas do amor, do sofrimento, da loucura”. Resumindo, não tem a desinteligência “vesga” de se julgar idêntica a si mesma.
Logo de início, as suas obras evadem-se absolutamente do fechamento comunitário, “como um bando de gerifaltes para fora do ossário natal” (Heredia). Estas imagens, estranhas à depressão narcísica ambiente, escapam completamente à regressão contemporânea do “identitário”, às segregações religiosas ou sexuais em voga.
Kimiko Yoshida rejeita essa defesa mortífera, furiosa, arcaica da “identidade”, da comunidade, da nacionalidade – nisso consiste a sua “absoluta perfeição”. Nenhuma pertença a define, nenhuma família, nenhum clã. Manifestamente, não pertence nem adere a nenhum grupo étnico, religioso ou sexual. Vira as costas às epidemias contemporâneas da aflição identitária : pertença a um gueto religioso, câmaras mortuárias comunitárias, endogamia étnica, segregação humilhada do gender. A artista exclui-se do niilismo depressivo que caracteriza a ideologia e economia globais. A sua obra responde justamente à globalização das mercadorias e das imagens atravessando as culturas e religiões constituídas, misturando as referências entre elas, metamorfoseando-as. Opõe-se aos choques entre comunidades linguísticas e pertenças nacionais cruzando ritos e mitologias, que miscigena e transforma.
Saberemos escutá-la? Nada é menos seguro.
Há que recordar as seguintes palavras de Rimbaud na sua segunda carta do Vidente: “Quando for quebrada a infinita servidão da mulher, quando ela viver para ela e por ela, depois do homem – até então abominável – lhe ter dado a liberdade, também ela será poeta. A mulher encontrará o desconhecido! Serão os seus mundos de ideias diferentes dos nossos? Ela encontrará coisas estranhas, insondáveis, repulsivas, deliciosas; havemos de tomá-las, de compreendê-las.[v] [6]”
Chegou, com efeito, o momento de compreender.
Kimiko Yoshida explica-nos que a identidade é uma fantasia, uma projecção imaginária, nada mais que uma sobreposição de sucessivos empréstimos identificativos. Pensa verdadeiramente que não existe identidade, apenas identificações. A identidade não passa, assim, de uma lista de identificações imaginárias, uma sobreposição de logros e quimeras, miragens justapostas, absorções díspares, ficções heteróclitas. Não é certamente o eu que satura os Auto-retratos de Kimiko Yoshida. Ela não tem dúvidas de que o eu é esta “função de desconhecimento” saturada por uma “ilusão de autonomia[vi] [7]”, este bricabraque de logros e aparências, esta sobreposição de camadas imaginárias desprovidas de núcleo, cuja inconsistência fundamental é assim descrita por Lacan: “O eu é um objecto semelhante a uma cebola; seria possível descascá-lo e ir encontrando as identificações sucessivas que o foram constituindo.[vii] [8]”
A questão de que se sustenta Kimiko Yoshida não consiste seguramente num insignificante Quem sou?, pois a sua obra abre-se sobre a questão mais pertinente, mais essencial, das identificações: Quanto sou?, o que possui evidentemente um alcance muito diverso.
Alcance radical, que vai direito ao coração da imagem, por pouco que procuremos pensar o significado de representar. Baudelaire é um dos que pensam que a multiplicidade que está no princípio da representação está igualmente no coração do “indivíduo”. Há que reler a seguinte anotação de Fusées: “Glorificar o culto das imagens – culto da sensação multiplicada. A embriaguez é um número. O número está no indivíduo.” Esta pergunta – Quanto sou? – mostra que é o número nela que interessa Kimiko Yoshida.
Aquilo que a artista procura dizer com precisão é “o lugar onde o Ser se manifesta”. Heidegger descreve do seguinte modo a experiência poética do pensamento: “Este carácter do pensamento, o ser obra de poeta, encontra-se ainda velado. Onde se deixa ver, é há muito tomado pela utopia de um espírito semi-poético. Mas a poesia que pensa é na verdade a topologia do Ser. A este, ela diz o lugar onde ele se manifesta.[viii] [9]” O que a artista procura pensar em imagens são os interstícios, os intervalos, os interfaces, as refundições, os empréstimos, as fronteiras, as anexações, as atracções, as atomizações, as apropriações, as impurezas, os não-lugares, os recalcamentos e as ilusões consubstanciais à identidade: as identificações imaginárias inconscientes, as alteridades de acaso, as heterogeneidades ignoradas.
UMA LUZ DE MORTE QUE INCESSANTEMENTE DESTRÓI A MORTE
A História, em Kimiko Yoshida, apresenta-se obliquamente, vã e salva ao mesmo tempo. Os antigos rituais, as mitologias esquecidas, as liturgias mágicas recomeçam, de outra maneira, vindos de outro sítio. Uma História já teve lugar; uma outra avança, podemos vê-la, pressenti-la, analisá-la, adivinhá-la, expô-la já com uma inquietação alegre. “Os meus auto-retratos são naturezas-mortas. Aquilo que mostro é a imagem de um cadáver.” E acrescenta a artista: “Para reencontrar a luz específica das casas tradicionais japonesas, aquela luz subtil descrita por Tanizaki em Elogio da Sombra, uso uma iluminação suave (duas simples lâmpadas de tungsténio de 500 Watts), que os profissionais normalmente usam para fotografar objectos. Assim, aquilo que fotografo como uma natureza-morta é o meu corpo enquanto cadáver.”
Como suspeitar, quando se olha superficialmente estas imagens perfeitamente belas, aquele combate clandestino essencial que se trava sob uma luz de morte que incessantemente destrói a morte? “Não há superfície bela sem profundeza assustadora” (Nietzsche). Além de escapar às banalidades sentimentais, românticas e depressivas, esta artista toma a morte e o nada como seus parceiros. Descobrimos então, nestas imagens de formalismo seguro e minimalismo concentrado, uma arte metafísica, o que, nestes tempos realistas e naturalistas, pode parecer mais incongruente do que nunca. Será a incongruência metafísica decididamente insustentável à luz das práticas contemporâneas da arte? Sem dúvida. Contudo, esta propaganda vê-se desmentida por um testemunho capital, Sollers: “‘Metafísica’ quer dizer que nada, nem o tempo nem o espaço, nem o nascimento nem a morte, nem a linguagem nem a vida, e ainda menos a sua própria identidade, lhe surgem verdadeiramente como valendo apenas por si.[ix] [10]” Por conseguinte, existiria, hoje mesmo, perto de nós, alguém, um escritor francês, uma artista japonesa, para quem não é inconcebível que a identidade “propriamente dita” não valha por si…
Kimiko Yoshida reconduz tudo à ausência, à desaparição, ao apagamento. Mas tudo reside na transformação, nas ligações, nas inversões: metamorfose do corpo, mudança dos significados. A ausência é o pressuposto de toda a imagem, que nunca representa mais do que aquilo que falta. No entanto, a desaparição é a própria condição da revelação; o apagamento inverte-se em epifania.
Estas imagens apagam, reconduzem, desfazem, recompõem. A figura envolve-se na cor, dissolvendo-se nela, evaporando-se na monocromia, abstraindo-se frequentemente por trás de um objecto que flutua em primeiro plano. O objecto encontra-se lá, a partir de agora tesouro conservado num museu, as civilizações desapareceram, os rituais foram sem dúvida celebrados, mas há muito, muito tempo, quando ainda existiam chefes de tribo e líderes de horda, xamanes e feiticeiros, rituais de iniciação e ritos funerários mágicos. Logo, há muito tempo atrás, no neolítico, na idade do bronze, no tempo dos faraós ou dos imperadores incas…
Ciência, elegância, violência, tudo isso se encontra subjacente, à espera, nisso consiste toda a força fria destas imagens. Tudo na forma é subtilmente estendido, tratado, retido. Nada de pathos, o lirismo está no interior. Nada de tagarelice, apenas alusão, afloramento, apagamento. Nada de expressionismo, o minimalismo mantém à distância quaisquer desabafos da dor ou da infelicidade. Fica demonstrado que não é necessário cair na caricatura ou na paródia para captar o nosso olhar. Somos positivamente convidados a ver Tempo, a escutar o silêncio, a meditar sobre a impermanência, a sentir um insolente perfume de excepção reservada.
IDENTIFICAR-SE, NÃO COM UM IDEAL IMAGINáRIO,MAS SIM COM UMA IDEIA IMATERIAL
Estas obras, deliberadamente despojadas, impõem um mesmo rosto, um fundo liso, uma cor única, um objecto, muitas vezes único, que dissimula o rosto. Contudo, esta concentração voluntária sobre um mesmo número de motivos, esta gramática minimal e ascética, permite um registo sensível e subtil. O minimalismo construído e o formalismo estendido dão-nos aqui a sentir o livre jogo fluido da sedução, numa ressonância jovial, límpida, meditativa. Os censores dos nossos tempos consideram a sedução na arte particularmente perigosa: a fealdade é um facto, a desgraça obrigatória, a dor encorajada, a depressão é o objectivo; a qualquer momento, é recomendável que nos injectem uma dose generosa de angústia concentrada, é bom viver no mal-estar e na perplexidade. Aqui, precisamente, vemos bem que a questão é ultrapassar essas inibições com desenvoltura. Aqui, tudo é posto em acção contra a fealdade, a desgraça e a dor, tudo aqui se opõe – com leveza e naturalidade – à depressão e à angústia.
Para Kimiko Yoshida, tudo se resume a ir, com leveza e naturalidade, em direcção ao desprendimento. Será isso, o desprendimento, que ela encontra no apagamento de si própria? Vejam a imagem daquele rosto prestes a fundir-se com o fundo, aquela maquilhagem que se confunde com a cor única, aquela figura que se dissolve na monocromia. Sentimos que, em semelhante imagem, os significados se invertem, o sentido é subvertido, a representação escapa aos seus pressupostos. Bruscamente, compreendemos que a artista vai buscar a sua maquilhagem à técnica do shironuri japonês, aquele cosmético branco com que as gueixas e as maikos cobrem tradicionalmente o rosto. Ora, essa tradição japonesa inverte o próprio valor da maquilhagem: tudo a opõe aos sentidos que o Ocidente dá a esse artifício.
A maquilhagem ocidental é concebida para embelezar e realçar, para tornar uma mulher ao mesmo tempo mais singular e mais bela, mais jovem e mais perfeita. O shironuri tem como único objectivo obliterar o rosto singular, dissimular os traços deste cobrindo-o de branco, apagar toda a particularidade. Uma japonesa cujo rosto está assim coberto de branco não procura, portanto, nem mascarar os defeitos, nem aproximar-se de uma perfeição, nem singularizar-se; quer apenas tornar-se numa forma genérica, assemelhar-se a uma figura essencial, confundir-se com um arquétipo. A sua maquilhagem é a máscara branca que oculta as particularidades, apagando tanto as qualidades como as imperfeições, obliterando a individualidade.
É, assim, uma questão de identificar-se com a ideia de uma mulher, não com um ideal de mulher, de fundir-se numa ideia abstracta, não de elevar-se à dignidade de um ideal de perfeição. A maquilhagem japonesa representa a ideia contra o ideal. A abstracção contra a perfeição. O arquétipo contra a singularidade. É uma questão de desprender-se de toda a vontade de singularidade, unicidade ou originalidade. O caminho, o único caminho recomendado, passa pelo apagamento, pelo desprendimento, pela universalidade. Então, compreendemos a situação de Kimiko Yoshida, suspensa entre a figuração (o seu rosto) e a abstracção (o shironuri). A sua estética do apagamento é assim, na intimidade da ideia imaterial, um apelo contínuo ao impessoal, ao desprendimento, por outras palavras, à iluminação. Os seus Auto-retratos, anónimos e universais, procuram, através do shironuri da gueixa, exprimir esse impulso em direcção ao que está por atingir, à ideia, ao imaterial.
A POLIFONIA DO SER
Depois de lhe ter dado acesso a todos os objectos preciosos conservados nos seus vários departamentos etnográficos ou arqueológicos, o Museu de Israel, em Jerusalém, organiza uma importante exposição das obras que a artista realizou com estes tesouros. O título que Kimiko Yoshida escolheu dar à sua exposição, Tudo o que não seja eu, implica assim que tudo o que é outro, tudo o que lhe é estranho, lhe interessa e é precisamente o que escolheu mostrar, pois é este, na sua opinião, o conteúdo mais digno de uma grande exposição. Eis-nos longe do fechamento sobre o narcisismo da pequena diferença, longe do bafio comunitário, do reflexo pavloviano do familiarmente correcto. A artista lembra-nos simplesmente, como Montaigne, que “somos todos bocados, e a nossa contextura é tão informe e diversa que cada peça, cada momento possui o seu próprio jogo”.
Kimiko Yoshida oculta-se, assim, por trás da realidade das identificações, retira-se, quase não fala de si. Serve-se de si própria apenas para falar de outra coisa, reivindica o número máximo de máscaras para maximamente neutralizar o pathos. A verdade é que ela pensa mesmo, como Pascal, que o eu é odioso. Pensa mesmo, com Malraux, que o “montinho de segredos”, ou “o gado íntimo”, segundo Nietzsche, é o que há de menos interessante num artista.
Os seus Auto-retratos descem a cortina sobre a mesmice do ser. O veredicto de Winnie, em Dias Felizes, de Beckett, aplica-se igualmente ao destino escolhido pela artista: “Ter sido sempre aquela que sou, e ser tão diferente daquela que era.”
A polifonia do ser é a sua opção – e compreendemos que é uma opção tão filosófica como estética. Adivinhamos então que é nessa polifonia que se funda a ética da artista – uma ética da mestiçagem, da transformação, da impureza. Alcançamos igualmente que essa polifonia pode vir a ser a resposta política ao impasse segregacionista do fechamento comunitário, à deriva niilista das crispações identitárias que caracterizam a era global.
Acontece que não é dentro da sua cultura nativa, mas sim na Europa, mais precisamente na França, que Kimiko Yoshida opera essa polifonia essencial, fazendo viver esse coro de estranhezas, essa explosão das heterogeneidades e essas transformações. Longe da “autoficção” actual, efectivamente dominada por todas as formas de expressões ingénuas e confusas do “eu” que nela andam à roda, o eu posto em jogo por ela faz apelo ao outro. É sem dúvida o outro que é constituinte do eu que me constitui, alteridade inseparável da constituição de toda a imagem de si próprio, inseparável de toda a representação. “Interessa-me tudo o que não seja eu.” E é esse o único eu que a artista japonesa evoca, em imagens onde se coloca em cena sempre como outra, onde apenas encena a alteridade em si. Como o desvelar de uma ideia, como a interpretação de uma vulnerabilidade, até mesmo como a aparição de um cadáver que vem contradizer o niilismo narcísico. Imagem de um “tornar-se outro” sem denegação nem ironia, sem tragédia nem expressionismo.
Logo, uma imagem de si que de forma alguma evita ou recusa as referências trans-culturais e significados trans-históricos, que incessantemente revisita, desconstrói e desdobra em imagens, alusões, metáforas, metamorfoses, máscaras e personagens, ficções, transformações cruzadas ou invertidas, numa sucessão de transfigurações, anexações e iluminações. Uma imagem que procura repensar em imagens as suas próprias significações e referências, uma imagem concebida na necessidade de pensar os seus próprios pressupostos, um pensamento que integra em si a análise do que o torna possível: a epistemologia e a semiologia, o formalismo e o minimalismo, a subtracção, a adição, o desvio, o ritual, a psicanálise, a mestiçagem, a estética, a sensibilidade, a mistura dos géneros, a própria imaterialidade e a polifonia do pensamento, tudo o que permite a Kimiko Yoshida experimentar a arte como a forma mais audaciosa, mais radical, mais livre de dizer o que “falta ser”, de converter o sintoma, de transformar a dor e a desgraça, de avançar para além da devastação e do desespero.
UM ESPAÇO LIVRE PARA O JOGO DO TEMPO
O que é, então, a imagem do eu? Ora, é o caleidoscópio de um sujeito em processamento, de um eu que incessantemente se torna em um outro, de uma alteridade desenvolvida no impulso de um “sem-si” beckettiano. “Onde, agora? Quando, agora? Quem, agora?” São estas as três perguntas que abrem O Inominável, de Beckett, e que colocam também os Auto-retratos de Kimiko Yoshida. Estamos conscientes de que, para o artista, “cada imagem é uma cerimónia da desaparição”, um ritual de apagamento de si.
Não é o inominável da obra aquilo que abre um “espaço livre para o jogo do tempo” (Debord), aquele espaçamento da duração que acarreta uma ilocalização do tempo: onde, agora?
Não é o inominável aquilo que proclama este eterno retorno, este aparecimento do tempo vertical no tempo: quando, agora?
Não é a “identidade” do autor, encarada do ponto de vista do livre jogo do tempo, que se mantém inominável na obra: quem, agora?
Sob a máscara de uma espoliação fascinante, que não se escusa ao abandono absoluto de si, a artista torna-se ausência, desaparição dissimulada sob a sombra de um anonimato impessoal e neutro. A suposta identidade, de que Kimiko Yoshida se despoja como se fosse uma profundeza vazia sem relação com ela, fixa-se no seu exterior como a irrealidade do indefinido. A artista compreendeu que querer fixar a irrealidade é errar num desvario ininterrupto, na obsessão repetitiva de um impulso em direcção a um inalcançável que se esquiva, que não possui qualquer tipo de fixidez, que nunca regressa ao seu lugar e não passa da intimidade vazia de um desconhecimento inconsciente de si próprio.
Ela soube reconhecer a existência, no fascínio enganador e estranho pela identidade, de uma notável intenção de abolir o futuro, para que cesse a obscura reserva dos possíveis. Identificar-se com uma identidade é tomar um acaso como qualquer outro, numa espécie de lapso bizarro, não querer saber nada sobre isso e insistir em fixar-se na intimidade vazia dessa ignorância. Essa identidade, sobre a qual não tenho poder e que também não o tem sobre mim, pois não tem nada a ver comigo, não passa de um encontro arbitrário, aleatório, superficial, estranho a toda a decisão, um despojo indeciso e incerto, uma sombra indeterminada que se liga a um epitáfio sem espessura, sem consequência e, poderíamos dizê-lo, sem amanhã.
A liberdade feliz, desprendida, com que Kimiko Yoshida avança em direcção à desaparição da identidade põe em evidência a irrealidade do eu, a instabilidade imaginária, a porosidade identificativa. Assim que é representado, o eu perde a plenitude da sua suposta unidade, incapaz de alcançar-se na representação de si mesmo. O eu que é representado desaparece, deixa de ser eu para ser um outro, de forma que, quando me represento, tenho de desaparecer, pois não sou aquele que mostro. Então, é a desaparição que aparece numa espécie de desenvoltura soberana, numa aliança com a revelação do invisível, num pacto com o negativo invertido. A arte de Kimiko Yoshida vem de certa forma instalar-se nesta vaga. Daí chega-lhe um apelo que a atrai para uma instabilidade essencial onde o ser se reconhece na possibilidade do não-ser, onde a identidade já não é idêntica a si mesma, onde o nada se oculta, onde tudo está em jogo: o direito ao apagamento de si próprio, a possibilidade de desaparecer, o poder de morrer.
A experiência é digna de ser meditada.
Estes Auto-retratos são uma tentativa de tornar a representação possível, captando-a no ponto em que o que está presente é a ausência de qualquer figura. O estado de invisibilidade não é o ponto em que a artista se coloca em cena, mas sim aquilo que ela põe em cena. Aqui, ela sente profundamente que o estado de invisibilidade que coloca em cena se encontra em relação com a exigência radical da arte, indo para além de uma simples privação de visibilidade ou de um estado psicológico que lhe fosse apropriado.
Representar-se por meio do auto-retrato, como Kimiko Yoshida experimenta frontalmente, é entrar na afirmação da solidão onde o anonimato ameaça, é correr o risco do apagamento anónimo. Ao imaginar a imagem com vista à visão pura, a artista purifica a presença da ausência, tornando-se ela mesma na “ausente de todos os ramalhetes” formulada por Mallarmé para indicar a lacuna essencial que se dissimula no coração da representação, expondo-se à desaparição de si mesma, à desaparição da máscara da personagem, entregando-se à impessoalidade da simbolização, à impessoalidade da morte.
“Onde estou? Quem sou? Um simples passageiro no eterno retorno da Salvação. Sim, claro, da Salvação.” Com estas simples palavras termina a narração de Une vie divine. O autor – ou seja, Sollers, ou o narrador, que é também Sollers, ou então Nietzsche, de quem ele fala, ou ainda Ulisses, que já nomeou este inominável – “chama-se Ninguém em pessoa. Todos os nomes da História podem pertencer-lhe : Nemo, Nihil, Nul, Nobody, Nothing, Néant, Nicht, Nichtung, Nessuno, Niente, Nada, Nadie[x] [11]”.
A IMAGEM ÚNICA DE UMA FIGURA ÚNICANA IMPESSOALIDADE ANÓNIMA DO UNIVERSAL
Kimiko Yoshida não crê que a identidade seja compreensível ou incompreensível, finita ou infinita: é, nada mais. Além de ser, a identidade não é nada. A identidade é – e quem tentar fazê-la exprimir mais, descobrirá simplesmente que ela não exprime nada. A identidade é, sem objectivo e sem uso; não pode sequer ser idêntica a si própria. Nenhuma verdade saberá captá-la, e nenhuma contradição saberia opor-se-lhe; é indecidível e não pode ser verificada. Nenhuma evidência ou certeza a tornam mais certa ou mais real. Apenas a nomeada a ilumina com o peso do símbolo. É a sociologia ou a “comunidade”, a família ou a polícia, que lhe conferem a única consistência possível: imaginária. Neste sentido, a identidade é solidária com o corpo: tanto uma como o outro criam imagem, consistem numa imagem. O corpo e a imagem são, precisamente, imaginários. Mais exactamente: a identidade é, nas representações de si, a imagem que falta ao seu lugar, a imagem de uma falta.
Na imagem de si que a artista captura, captura apenas, sob a forma de uma imagem, uma aproximação, um substituto, daquilo que falta. Kimiko Yoshida sente essa falta, e sabe apenas que a obra, uma vez realizada, se fecha sobre a afirmação muda de que a identidade, no fundo, é impessoal, sobre a impessoalidade anónima do universal. A identidade não pertence a si própria, da mesma forma que não pertence a uma “pessoa”. Ela é – na totalidade única da sua falta de acabamento, no rigor da sua incompletude inessencial, no privilégio da sua infinidade.
Mas como acontece isso?
Vejam a artista, na sua “quase desaparição vibratória”, nas palavras de Mallarmé, dissolver-se na monocromia da sua imagem: aquilo que vemos não é a imagem de um modelo, mas sim um modelo de imagem. A artista não se mostra a si. O que mostra é uma imagem. A imagem toma a dianteira, torna-se no essencial. Tal significa que a imagem não quer à partida designar ou mostrar alguém, pois o que designa ou mostra é, antes de mais, uma representação. Só a imagem está presente, aquilo de que fala desaparece naquilo que mostra. Neste sentido, apenas a obra é presença – presença que oscila entre a sua presença como imagem e a ausência do que representa.
Sob esta perspectiva, a arte de Kimiko Yoshida tende para o essencial; é uma arte que se dirige à sua essência, que não trata de reproduzir a figura do seu modelo, mas sim de compor com luz e cor uma figura que seja a imagem única de uma figura única, e não a figura de alguém. O seu objectivo não é verdade, mas sim a glória de figurar, de evocar na sua ausência um objecto, a glória de ser uma imagem que se constitui de uma ausência e se impõe para além dessa ausência sob a forma de uma presença real. A imagem é a presença de uma ausência, eis o que realiza a obra, na busca sem fim do que lhe falta.
Ao elevar-se à dignidade do universal, a obra exige à artista que perca a sua identidade, que renuncie a todo o carácter individual e que, deixando de se referir a essa singularidade que constitui o seu “eu”, se torne na excepção anónima onde se anuncia a figura impessoal da unanimidade. Esta exigência não o é para Kimiko Yoshida, pois os seus Auto-retratos não apresentam conteúdo identitário; a única coisa que pretende capturar é o ar que precisa de respirar, a usura dos dias onde vai desaparecendo o rosto que conhece. Através da experiência imemorial do exílio, da travessia infinitamente recomeçada de culturas e mitologias desconhecidas ou familiares, a artista japonesa experimenta o enigma do mundo ao desapossar-se de si mesma, abandonando-se à impureza infinita da migração e da mestiçagem, nas profundezas do indefinido, na infinidade essencial do universal.
SER CADA VEZ MAIS QUANTO MAIS SE APROFUNDAA TRANSFORMAÇÃO DE SI
Kimiko Yoshida cria imagens numa espécie de exclusão de que se exclui tal como se exclui de si própria, na experiência da saída para “fora do ossário natal”. Ela não justifica o fluxo genético de onde sai; pelo contrário, cerca-o a partir do exterior, marca-o, julga-o, aniquila-o, esquece-o. Esta possibilidade de avançar até ao fundo do exílio transforma um arrancamento para fora da necessidade de origem, para fora da doxa familiarista, numa infinita metamorfose onde a artista entra no seu próprio apagamento e na procura do esquecimento de si. Esquecimento de si que, além conduzir ao fading e à desaparição, faz a própria morte desaparecer no movimento infinito de desaparecer, como se se tratasse de ser cada vez mais quanto mais se aprofunda a transformação de si.
Toda esta cadeia de metamorfoses, alterações e mutações, esta série de afastamentos metódicos que aprofundam indefinidamente os cruzamentos, transformando o objectivo (figurar) em obstáculos (apagamento), sem esquecer os obstáculos no caminho para o objectivo visado, toda esta impecável cadeia de imagens não figura a verdade superior do mundo, nem sequer a sua transcendência; figura, isso sim, os choques e as felicidades da figuração, dessa necessidade que faz da ficção um meio de verdade e da ilusão a possibilidade de gozar o invisível.
Kimiko Yoshida anexa as mitologias, desvia os rituais e transforma o significado destes; as suas experiências escrevem uma nova forma de viver, variegada, abundante, maleável, uma nova forma de explorar as culturas e as religiões, ora por dentro, ora por fora, ora nesta língua, ora nesta outra. Mostra a sua vida através da divisão, do fragmentário, da mistura dos géneros, da deslocação, da colagem. É a existência contemporânea mais livre, mais alegre e mais consciente, a experiência artística extrema, indivisível, que se afirma o único verdadeiro apogeu do real.
É um acto de luz contra todos os violentos e assassinos obscurantismos em curso. Dificilmente se poderá fazer algo mais completo, mais rico, mais belo. Parece simples. Mas não é. Nesta preocupação do apagamento de si onde se afirma a polifonia do ser, uma vida contemporânea encontra a sua justificação.
Mas o artista nunca sabe que obra fez. O que fez é uma imagem, e aquilo que fez ao fazer uma imagem é por si destruído ou recomeçado numa outra imagem. Neste sentido, devemos admitir que o autor se encontra separado da sua obra, que não pode tê-la, que não tem outra possibilidade senão criar sempre esta obra, a qual peca sempre por defeito em relação a si mesma. A impossibilidade de cessar de criar equivale, para o artista, à descoberta de que não há mais lugar para ele no espaço aberto pelo que criou.
Aquele que cria encontra-se no exílio quando cria, e continua exilado quando a obra está criada. O que o artista descobre – aquilo que, na obra, lhe pertence – é sempre esta ausência, este exílio, esta falta que antecede a obra e que é a causa da sua dependência de criar. Compreender que o artista volta a encontrar, no fim da obra, aquele exílio que precisamente o conduzira a iniciar a obra permite igualmente compreender o sentimento de infinito que experimenta neste recomeço forçado, nesta incapacidade de pronunciar o fim que falta, nesta experiência que não cessa de escrever-se.
NUM PARA ALÉM DO QUE MOSTRA A IMAGEM
Podemos dizer: o artista está onde a obra não está feita; onde a obra está, deixa de estar o artista. Criar é desprender-se da convenção identitária, retirar o laço social do curso do mundo, despojar da sua causa aquilo que crio. Criar é perder o poder de dizer “eu falo” no preciso instante em que a obra pronuncia o seu irrevogável “eu sou”. Criar é identificar-se com aquilo que não pode cessar de ser e é por causa disso, por se identificar com o ser, que o artista deve de certa maneira desaparecer da sua obra. Para Kimiko Yoshida, representar-se é desaparecer sob uma imagem e, desse modo, entrar em contacto com a ausência tornando-se imagem. Desaparecer na cor única é fazer com que a cor que alude a uma figura se torne numa alusão ao que não tem figura. A imagem, que é essa forma desenhada sobre a ausência, torna-se então na informe presença dessa ausência. A cor única torna-se na abertura opaca sobre aquilo que existe quando nada mais resta que o vazio.
Porque teria o acto de figurar algo a ver com essa ausência essencial, essa ausência tão extrema que só nela aparece a desaparição? Uma imagem fascina quando concentra em si o fulgor ofuscante e encantador do que nela falta, aquela falta ontológica presente em todas as imagens que provoca o fascínio. Uma vez fascinado o olhar, aquilo que este vê na imagem não é aquilo para que olha, aquilo que o prende e açambarca não está na imagem que olha, mas sim no que falta a esta, fixando a causa do fascínio num para além do que mostra a imagem. O fascínio está fundamentalmente ligado à presença neutra e sem contornos de uma opacidade indeterminada e sem figura no seio da figura. Logo que é captado pelo olhar, este buraco de opacidade no seio da figura, este buraco que abre a ausência no coração da imagem, produz uma espécie de inquietação e atractivo. Com a aspiração de Kimiko Yoshida a desaparecer na cor única, a ausência torna-se visível, por ser ofuscante.
O olhar é levado num movimento imóvel, absorvido num fundo sem profundidade. O que lhe é permitido ver por este contacto à distância é o fascínio ofuscante daquilo que não é possível ver. O olhar apenas descobre a causa do seu desejo de ver naquilo que está fora do alcance, que falta à imagem, que abre no visível um hiato impossível de tapar. Assim, é precisamente naquilo que não é mostrado que o olhar encontra a causa do desejo de ver. E é naquilo que o torna possível que o olhar encontra o poder que o neutraliza, que o engana, ao proibir-lhe alguma vez acabar. Aí se revela a função do fascinum, que é aquilo que transcende o olhar, que lhe indica, numa visão nunca concluída, aquele ponto que cativa o olhar e não pertence à realidade da imagem. O fascínio provocado pelo que falta à imagem deixa de ser a impossibilidade de ver, passando a ser a impossibilidade de não ver. O fascínio não depende da impossibilidade de ver (o invisível), mas sim da impossibilidade de não ver o defeito que reside na imagem, o punctum que perfura o visível e o torna desejável. Incessantemente.
O BRILHO INESGOTÁVEL DO QUE FALTA
A imagem de Kimiko Yoshida possui a qualidade essencial de mostrar sobretudo o ponto nela que a dissimula; tem em si, graças a este poder de se dissimular, a energia imaginativa que confere espontaneidade e inocência ao fingimento.
É que a imagem, como sabemos, tem o poder de fazer desaparecer os seres e as coisas, fazendo-os aparecer enquanto desaparecidos, fazendo-os aparecer na sua ausência, dando-lhes uma aparência que não é mais que a de uma desaparição, aparência de uma presença que fala apenas da ausência. No entanto, a obra de Kimiko Yoshida mostra que a imagem, além do poder de convocar a aparência de um ser no seio da sua ausência, possui também o de desaparecer ela própria nela, de se apagar no meio do que realiza, anulando-se aí enquanto proclama a plenitude do que mostra e apaga infinitamente.
Esta experiência orienta-nos, sem dúvida, para aquilo que procuramos na sua obra. Já não podemos ignorar o que esta jovem traz para a sua arte ao desaparecer na sua imagem, ao desaparecer da sua imagem, ao fazer aparecer nela uma imagem da desaparição. De alguma forma, traz para a sua arte a autoridade do seu próprio desvanecimento. Torna sensível, por meio do seu apagamento silencioso, a revelação indistinta sobre a qual a imagem, abrindo-se ao seu além, se torna em plenitude vazia, cuja própria abertura erotiza o olhar. Esta “plenitude” é “vazia” porque mostra plenamente que existe na imagem uma falta ofuscante, invisível e vazia – não é indiferente que Kimiko Yoshida tenha usado essas mesmas qualidades para o título de uma das suas obras[xi] [12]. Esta falta – ofuscante, invisível e vazia – define o além que o olhar deseja precisamente ver.
Este hiato que perfura a imagem, que é o recurso da sua arte, tem a sua fonte no apagamento a que todo o artista é convidado, especialmente quando apela à imagem de si próprio. Kimiko Yoshida entrega-se ao brilho inesgotável do que falta – de novo, mais um título de uma obra sua[xii] [13]. Depois de se ter privado de si, de ter renunciado a si, preserva, no entanto, nesse apagamento de si a autoridade de um poder, a decisão de desaparecer para que, nesta dissolução na monocromia, ganhe forma, coerência e pertinência a afirmação do que é. Sem fim nem começo.
Este poder não consiste no domínio, mas sim na intimidade do apagamento que a artista impõe à sua própria figura, fazendo com que este apagamento seja bem o seu, o que resta dela própria na discrição que a recata, sem deixar contudo de a revelar ao olhar. A figura singular (“auto-retrato”) desvanece-se na monocromia para dar voz a um universal. Na profundidade da cor, as possibilidades da aparição e da revelação sobrepõem-se à desaparição e ao apagamento.
Ao transformar-se, Kimiko Yoshida oferece-se a oportunidade única de elevar o seu projecto até um impossível que o ultrapassa. Ao afirmar o direito absoluto a identidades sucessivas e simultâneas, ao mesmo tempo ficcionais (cada auto-retrato como Noiva fala de uma noiva celibatária) e contraditórias (A Noiva Rei da Judeia, A Noiva Demoiselle d’Avignon, etc.), ao afirmar o direito absoluto a desaparecer no apagamento e na metamorfose de si, Kimiko Yoshida afirma o único direito que é o inverso de qualquer poder, uma loucura necessária à única razão de ser da arte, que consiste em transformar aquilo que apenas a arte pode transformar. Ao apropriar-se de mitologias e rituais heterogéneos, ao ir buscar a estrutura de representação da pintura para abolir toda a representação, a sua arte comunica a ideia de um espaço rigorosamente irrepresentável, ilocalizável, de um espaço além da imagem, onde a representação excede o espaço da representação.
Em suma, para Kimiko Yoshida, a arte é antes de tudo a experiência da transformação: “A transformação é, para mim, o valor último da obra. A arte tornou-se, para mim, no espaço do reviramento, da livre ressonância, da metamorfose mudável – mutação, permutação, transmutação. Os meus auto-retratos, ou o que é designado por esse termo, são apenas o local e a fórmula da transfiguração. Interessa-me tudo o que não seja eu. Estar onde penso não estar, desaparecer onde penso estar, eis o que importa.”
De súbito, abole-se o passado, o presente torna-se constante, o futuro é aspirado. Estas imagens impõem-se como uma sucessão de epifanias, um encadeamento preciso, presente, transparente do pensamento. Não há melhor que este pensamento em imagens para afirmar o Tempo e revirá-lo sob os nossos olhos, transformando-o, reencontrando-o, respirando-o, isolando-o, espaçando-o, escutando-o, escoando-o, concentrando-o, dilatando-o, contraindo-o, acelerando-o, travando-o, desmultiplicando-o.
Jean-Michel Ribettes.
Tradução: José Gabriel Flores.
Catalogue Tout ce qui n'est pas moi, Actes Sud, 2007
Exhibition Tudo o que não seja eu at Museu das Artes, Madeira, Portugal, 2007
[i] [14] Montaigne, Essais, III, p. 13.
[ii] [14] G. W. F. Hegel, La Phénoménologie de l’Esprit, trad. Jean Hyppolite, Aubier-Montaigne, 1941, t. I, p. 28.
[iii] [14] Arthur Rimbaud, carta de 13 de Maio de 1871 para Georges Izambard, conhecida como “primeira carta do Vidente”.
[iv] [14] Arthur Rimbaud, carta de 15 de Maio de 1871 para Paul Demeny, conhecida como “segunda carta do Vidente”.
[v] [14] Idem.
[vi] [14] Jacques Lacan, Écrits, Seuil, 1966, p. 99.
[vii] [14] Jacques Lacan, Les Écrits techniques de Freud, 1975, 5 de Maio de 1954.
[viii] [14] Martin Heidegger, « L’Expérience de la pensée », Questions III, Gallimard, 1966.
[ix] [14] Philippe Sollers, Éloge de l’infini, Gallimard, 2001, p. 412.
[x] [14] Philippe Sollers, Une vie divine, Gallimard, 2006.
[xi] [14] Cf. a série de fotografias monocromáticas abstractas, intitulada L’Instance de la lettre, 2004-2005, in Jean-Michel Ribettes, D’une image qui ne serait pas du semblant. La Photographie écrite 1950-2005, Paris-Audiovisuel/Passage de Retz, 2005, pp. 178-181.
[xii] [14] Ibid.